A MJ queria que
lhe falasse sobre o acto de abdicar. E eu lá lhe disse huumm. A MJ continuou e assertivamente baldeou, mas serenamente,
compassiva, que acha que deve ser muito difícil. Ora, eu expliquei que sim.
Muito difícil. Tenho, a propósito dela, pensado a cerca do altruísmo. E, como
na minha vida é assim mesmo, lá me surge de fronte dos quatro-olhos alguém a dizer que esse aspecto, esse movimento é uma
profunda forma de egoísmo.
É feio julgar as
pessoas assentes em falsas premissas libertinas, como se fossem uma cambada de
semi-deuses que tagarelam convicções irrefutáveis. Gostava de os ver conversar
comigo. Possivelmente daria em gritos, por que, não tendo sempre razão, sou de
natureza tão complexa que consigo pôr em causa até a mais brilhante cor. Já
dizia, também, o Professor das ilusões que me mostrou as entranhas do Hospital
Conde de Ferreira, que se pronunciava mirando os tectos altos daquele edifício
fóssil e ardiloso, que é possível provar
que cuecas às bolinhas amarelas podem desencadear vómitos derivados de
mal-estar psíquico que depois se vai a ver melhor e afinal era tudo uma
Depressão. Conhecem o efeito Stendhal? Pois bem, tem a ver com isto. A arte
de observar gente de cuecas às bolinhas amarelas, por si só, já é
determinantemente artística, para além de que tem uma beleza intolerável.
A MJ gosta de
mim, tem-me respeito, mas preferimos dizer que se chama empatia. Não gostamos
de dizer que gostamos uma da outra. Ela não é minha amiga. Faz-me as perguntas
proibidas e sente que ainda não é hora de largar a mão. Engraçado como estamos
de acordo. Eu vou respondendo, suspirando, contando os fundos onde me passeio.
Confesso ter receio de a deixar ficar mal. É simples dizer o motivo disso. É
que eu sei o quanto ela escreve sobre mim. Às vezes, faz em esquema e desenha
setas e tudo. Ouve-se perfeitamente o riscar o Molesquine preto, sempre preto, com aquelas canetas magras e
compridas, cinzentas e que escrevem a cor preta. Estão a ver? São essas mesmas.
Não me recordo da marca. Mas só posso imaginar as marcas rabiscadas que elas
esboçam sobre as minhas crónicas. Dou por mim a desejar apanhar aqueles cadernozinhos
todos. É a curiosidade, a minha, que me faz sorrir. Acho-me piada. Sei o que é
estar no lugar dela. Mas eu ainda me ponho de frente.
Depois lá vou
eu. Mas ela guarda-me e depois pensa-me e a seguir discute-me com os outros que
já sabem tudo. E eu faço o mesmo, mas sozinha. Relembra-me as brincadeiras e de
facto nos sonhos a essência é a mesma, de uma exactidão que se espanta apesar
de sempre ter sido assim. O acto de espanto é indivisível de quem sou e como
vivo. A expressividade da minha cara e gestos, as interjeições que ponho em uso,
definem quem poderei vir a ser enquanto escritora de histórias. Todos temos
demasiados Alter Egos disfarçados de
papiros que damos a ler a quem julgamos que nos conhece. Contudo, a MJ hoje
sabe que eu me rio dos meus espantos, que outrora eram difíceis de aturar. Irra!
Foi uma jornada e peras. Mas valeu a
pena. Vale a pena e assim deverá continuar.
É um desempenho
que se pretende ser ininterrupto. Como a minha mascarada dislexia, que mal se vê,
mas existe. Como a primeira tatuagem visível na pele. Mas eu e a MJ sabemos que
um dia vamos chegar ao fim. E vai ser abrupto.
Vitória, vitória,
acabou-se a história.
E toca a seguir
sozinha, vagarosa, ignorando quem me chama e como quem come gomas a caminho de
um sítio que nunca se viu.
Ana Luísa Monteiro