21 dezembro 2011

cabelos curtos


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       Havia aquela que estava sentada de cabelo curto, numa sala sem luzes nenhumas, com um ruído de fundo desnorteante, um estorvo pousado nos seus ouvidos, os quais tapava com a palma das mãos. Sentia que não se ajustava senão com aquele ambiente descentrado, vazio de senso comum e de teoremas matemáticos, qual robotizada confraria que a tinha banido.
            Vai-te embora, não és daqui. Não serves. Não fazes o que é preciso. Há metas a cumprir. O importante é…
            O importante não era dela. Não lhe pertencia. Esse protótipo de viagem de comboio não era importante. Quantos carris já havia percorrido, ainda de cabelos pelo meio das costas, de mala irrepreensivelmente aprumada, em busca do preceito acertado, agradável por fora. Por dentro, submergindo nos labirínticos meneios de uma alma inquieta e sedenta de um adimplemento a rigor, justo e cru, agarrado a um direito, nada estava certo. Era como se viver o ideal fosse o comprovativo da película aderente a uma pele que o Sol já não queimava. Um penso rápido que se usava em detrimento do certo ou errado dos outros, das doutrinas da vida, vazias e desprovidas de verdade interior.
            Ela saiu do comboio a meio da direcção que tinha escolhido à toa, por lhe parecer bem, fazer sentido. Esvaziou toda a mala, toda a alma, cortou o cabelo. Mas cortou tanto o cabelo. Livrou-se da norma, escravizou as mãos ate conseguir arrancar as cintas e cortou o cabelo. Sentou-se por fim. Sabia o seu caminho. Os outros chamar-lhe-iam louca, imaginava ela. Permitia que esse fosse o fundo da corrente de ar que ali passava. Tapava os ouvidos, debatendo-se com total consciência com as vozes sentenciadoras. Sabia que não queria ir mais. Tinha secado e por tal cortou o cabelo. Evadia-se da compulsão da normalidade, legenda dos sargentos e dos subjugados, insígnia dos tacanhos e dos que carpem sem bulhar a vida. Chorar sem luta devia ser um motivo de vergonha. Mais uma vez, concluía que era… normal.
            Ela tinha uma crença infalível. Deitava as páginas do argumento fora, sem que pedidos de clemência dos fracos travassem os rasgões. Pensem o que quiserem, afirmava sozinha, sem claridade ou bússola. Tinha a sua crença, construída na percepção que tinha do vazio da caixa torácica. Antes que chegasse à auto-mutilação, precisava de ficar às escuras, agarrando-se à fé de si própria. Essa sim era um infalível cicerone por entre as sombras. Não ficaria por ser convencional e já há muito que a apelidavam de excêntrica. Respirava fundo. Atulhava-se dela mesma, rejeitando avidamente a letargia das viagens recostada no banco do morto a falar das montanhas que estão cheias de neve. Que lindo. O que interessa isso quando maior gelo está por dentro?
            Tudo isto sem saber que o capitalismo estava a chegar ao fim. Se antes soubesse… A paz vem de dentro. Só de dentro. Tapava os ouvidos com as palmas das mãos. Sentia-se antes de sentir de novo o excedente – do mundo, das pessoas, das luzes, dos barulhos. Aplausos sem audiência. E não era preciso. A paz vem de dentro.
            (…)

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