31 maio 2012

um gajo pequeno


Era um gajo que queria tanto estar na moda, ser o último grito, o mais avant-garde possível que comprou uns óculos de sol muito parolos.

Era um gajo que cismava tanto que tinha de parecer bem, informado das novidades de tudo o que lhe parecia in que nunca dizia "amo-te".

Era um gajo completamente infeliz. Fingia permanentemente uma leveza de espírito martelada a histerismo. Tudo para estar na moda e jamais sofrer de amor. Antes de desamor. Aquele que lhe atiraram à cara. Nem os óculos mal paridos, feios que dói, lhe safavam o borrão de crude estampado no focinho. Ninguém o queria. E ele sabia. Por isso é que fingia.

Era um gajo. Pequeno.

28 maio 2012

Elisa

Tenho de te escrever, de alguma maneira e ainda incrédula.

Ouvi os meus telefones tocar ao mesmo tempo, numa sinfonia estridente que me despertou do pesadelo precoce, deitado no sofá. Almofada vermelha. Atendi o que estava mais perto. Mas eu já sabia. É notável como as fracções contam – ouvir, despertar, saber e esvaziar por dentro. Depois é o processo, que não pára. Mil e uma voltas sobre o assunto. Nada resolve. Agarro as memórias.

A última: sentir-te e dizer que te amo e tornar a sentir-te. Antes: o copo de água fresca e a certeza que passamos a vida a querer coisas inúteis quando temos tudo. Antes ainda: que estás com medo e mo dizes para que eu seja eloquente, como o costume e como tu. Mais um passo atrás, naqueles minutos: eu vou envelhecer, agora sem que tu me digas como fazer para saltar as ondas. Um ano atrás: aquela conversa que só as duas sabemos, o que foi dito e sentido, o que me disseste e que só tu podias dizer, por que eu repeti nos meus olhos e lábios a tua mesma história. 

No meu conto de fadas, no traçado que vou compondo (e que afinal descubro que não é assim tão distante do que defini) lembro-me sempre de ti. Desde sempre. Já tantas vezes falei em tatuagens. Mas nunca falei em escrever com as duas mãos. A inteligência e a destreza coroaram sempre a tua bela cabeça, essa tua cara, de nariz empinado, olhos fortes e sorriso aberto. Sim, também nunca percebi muito bem por que é que os narizes empinados são tão mal vistos. No entanto, ninguém o empina como nós. Amarrotamos a modéstia, pois essa não caberá entre mulheres que sabem o que estão a fazer. Isso chateia, mas é mesmo assim. Para onde vamos? Já sei há muito que vamos à praia e levamos sandes magníficas. Vamos àquela festa, bem vestidas, adornadas, cheirosas. Tudo no seu lugar e vamos dar um abraço e as tuas mãos vão acarinhar o meu rosto sempre que precisas de me mostrar o quanto sou linda debaixo do teu olhar exigente, ferrando a língua a olhar-me nos olhos. 

Já se percebe que herdei o que era preciso. E é nesse espólio que suporto a tua ida. Desculpa ainda não acreditar. Talvez nunca acredite. Sinto, somente que jamais partes. Há pessoas que guardamos num bolso, num baú, num saco. A ti, guardo-te nos passos que dou, os mesmos que têm todas aquelas preciosas dicas de quem se passeia sem pousar no chão – tu, meu amor.

O resto não digo, não escrevo. Obrigada, mas é só nosso.

Até logo, Lili.

22 maio 2012

cordões enredados em milissegundos


Nada há como experimentar sensações. Uma delas, manipulada até despedaçar, é a da intimidade das coisas, dos sítios, das pessoas e das cores. De Janeiro até Maio o cenário muda, transmutação essa imperturbada pela circularidade do tempo.

Refiro-me ao bingo que se joga na fila de trânsito com que me atalho de manhã. Não vou nela e, no entanto, mas sinto-me fração acelerada daquele cordão de gente no sentido oposto. Há mais rotundas do que imaginava.

O tempo incumbe-se de premiar o dia com tesouros inigualáveis, só por que amanhã não estarão lá. E a imaginação pode então acontecer.



Hoje estava lá a mulher corpulenta, sentada de qualquer maneira, jogada no granito esfriado pela humidade de uma primavera de chuviscos de trazer por casa. Contemplava talvez o infinito, com os olhos colocados no rio Douro, presa num seu e muito próprio negalho que a segura à sua vida – aquela que desejava e não tem. Ar triste, costas entortadas, telemóvel na mão. Estupidamente, não podia sentir-se angustiada. Era uma resignada. É que os desejos são mais e mais.

Os desejos não podem ficar no papel ou escondidos por detrás da cabeça, cilíndrica de tanto novelo desejado, que se emaranham uns nos outros. Os desejos são ânsias. São excessivamente indeclináveis e têm de ser levados ao ponto de caramelo. Nem mais. Nem menos. Mas se forem menos, não passam de uma aguadilha adocicada.

Hoje lá estava a mulher gordíssima, torta, mal sentada e de semblante fechado, que contemplava, talvez e apenas, as tainhas do rio Douro, sentindo-se desolada pelo ambiente estar putrefacto. Estava resignada e nada tinha que ver com desejos. 

Ana

21 maio 2012

pequenos pensamentos que valem um pé à frente do outro

"Caso um homem tenha pouca imaginação para arranjar provas para a mentira, deve então dizer, de imediato, a verdade."
Oscar Wilde

17 maio 2012

ontem


Ontem era areia
Pesarosa nos pés
Abrolhada nas costas

Ontem era tinta na parede
Abolindo muros
Desbaratando a seriação

Ontem era passado
O trecho lanudo
Coçado, esfregado

Ontem era
Já se foi
Já se compôs

Ontem era ontem
O tempo estrábico
E andrajoso

Assim ontem se fez hoje,
E hoje já passou
Magnificamente esférico.

15 maio 2012

game over


"A vontade é impotente perante o que está para trás dela. Não poder destruir o tempo, nem a avidez transbordante do tempo, é a angústia mais solitária da vontade."

Friedrich Nietzsche


14 maio 2012

justificado



Apetece-me comentar o obtuso que se tornou o amor. Sim, outra vez. Chamar o amor dos dias que correm de rombo, aparvalhado, cheio de buracos e apoucado. Continua rápido. Não digo todos. Afirmo muitos.

O amor tornou-se assim.
Está aflito por ar. Está zangado que o confundam. Está exaurido de não olhar nos olhos. Está abafado de fraudes comoventes. Está derrotado de silêncios que gritam aos ouvidos. Está triste por acumular intrujices compadecidas. Está farto que façam dele um ludo de sombras, traçadas a vultos, já sem pessoas concretas, mas com ensaios à pressa, rasgando tempo. A preciosidade do tempo embevece-se dos minutos contundentes do encorpar o amor.

O amor fica assim e ainda o exprobram.
Ele é que é uma chatice, pedra no sapato, que teima em aparecer, que insiste em extrair a concórdia com uma vida despojada de autenticidade. Então é simples. A culpa é dele, somente. Há que haver justificações.

“Tenho medo” é das minhas preferidas. O medo é uma alavanca perfeita para o alvéolo da garantia de que a culpa não é de quem teme.
Mas também gosto de “Não quero discussões, nem problemas”. Essa é maior das pusilanimidades que conheço. Sinto que quem profere tal dito vive na terra do nunca e precisará de um jardim-de-infância para aprender a sonhar e a sentir.
“Se me amas então…” é um aviso desmerecido e irremissível. É um egoísmo tremendo de quem está mais rompido de pertença do que possa parecer possível.

Podia porfiar ininterruptamente. São tantas que poderia não parar de escrever. E eu só vim dar um murro na mesa do meu blogue. Nada mais.

Vou ouvir mais histórias. Há muito que “guardei” a minha numa pasta cujo título é caricato. Só vim apontar o dedo. Aos outros.

Ana

12 maio 2012

Incidente

sempre gostei de coincidências a metro. garantem-me que existe um pilar por debaixo dos meus pés. um pilar liso, longo e escorregadio.

hei-de visitar o norte insistente, a linha de cima da peninsula, de onde enxurradas de coincidências brotam. mas sempre por debaixo. mesmo por debaixo.


10 maio 2012

os erráticos


concebem-se monólogos internos declináveis, entre a distinta diferença de género. 

ele e ela gostam um do outro.

mas alguma coisa os impediu. alguma coisa que deve importar tanto que originou erros irreparáveis. 

ele vive na perda de quem o ama. 

ela vive na certeza de um abandono inexistente. 

não seremos eternamente raparigas e rapazes, erráticos e pedaços de compassos periódicos de máscaras?

no final do dia o que conta é onde se deita o pensamento. mesmo quando esse permite a vivência indelével de um ândito esconjurado, de uma distância passível de ser rasgada em mil pedaços. mas que nunca o é.


Ana

09 maio 2012

o escafandro do Jean-Do

diving bell. butterflies!

escafandros e submersão. a imaginação e as borboletas.

tudo para lembrar que num sopro de alguém tudo muda. para pior. para melhor.

é o lugar que precisamos e que alguém nos cedeu gentilmente que depois se transforma no maior desastre de uma vida. é o telefonema que não se fez. é a verdade por ser dita.

e depois? naquele momento em que mais nada resta fazer senão conversar para dentro... o que se faz? como se emenda? como se restaura a plenitude de uma vida toda?

há coisas que são a vida toda. e se sabe.

do filme le scaphandre et le papillon

08 maio 2012

bang bang parte 1

se sonhei com tiros? não

sonhei que fui à mercearia. adquirir artigos que não conheço. pelo menos que tenha usado.

fui e vim de avião, mas há muito que iniciei uma viagem impressionante. hoje ganhei pontos - Ana-1: conflito interno mais antiquado que as argolas de prata gigantes que penduram nas orelhas:0!

viva!

07 maio 2012

à toa

encontro-me com o tempo. ele diz que é basicamente filho parido de mim mesma, numa sombra qualquer de recusa empinada, do meu nariz, que não quero. é tempo, então, de descer da torre.

as palavras do Pablo imiscuem-se nos meus pensamentos. a quente que quer ser ainda mais quente.

06 maio 2012

ausfarht

viajar é olhar os pormenores. por rotas cumpridas, assume-se ter tudo na bagagem, se assim for. lê-se historias novas até nas folhas das árvores que apenas se limitam a estar ali.

sempre gostei de tulipas. são pequenas. num relance distraído, não há grandes registos. mas se a observação for real, transfigura um riso apalermado, uma correria num prado e o pôr o cabelo atrás da orelha.

bem sei que na volta parece estar tudo tal e qual deixei. o que somo anotei no meu caderno e na anarquia dos sentidos.

viajar é espontâneo. e lista pormenores.

Ana

03 maio 2012

carta ao M.

H,

se queres saber, nem há que perguntar. o caminho é sempre teu. a qualquer hora perdida num ponto cardeal distante. mais distância só se mede em km. tão mais perto estão os doces traços. viras a esquina e lá estarei. é como escrever o meu nome, incessantemente, em cima de qualquer pedra perfeita do vale do nevoeiro. se tivesse passado... se tivesse erigido o prepotente muro, não verias a que lê. aquela cujo nome se tornou impronunciável. o mesmo que sabes todos os dias. agarro uma caneta como quem afirma ser dona de si. dói saber-te magoado e incapaz de mim. poesia à parte, os teus olhos mantém a mesma pequenez familiar, que saudosamente sei. faço-te um sinal. fico incapaz de te responder directamente. desejo puder fazê-lo. por isso, ajuda-me. agarra-me por de dentro. sem pressa. quem vai com pressa não pode chegar. e é já ao virar da esquina. aí mesmo. uma conversa sobre nada, que dure um sem fim de tempo, isso basta. falarei do quanto tenho por dizer, num livro que não escrevo enquanto não ouvir o teu aval.
importa mais do que a humilde opinião da Agustina ou do José, até mesmo a do Luis. pinto a carvão da minha terra o quanto precisava da tua mão agora!

sempre tua
mil beijos

A.