Arvorar o corpo. Depor as pernas no chão, sentir o enrijecido
caminho e faze-lo mecanicamente. Ir direita ao congelador e sacar um gelado de
cone, que tem um sabor que já não faz lembrar morangos. Arrancar de qualquer
maneira o papel enleante, lamber aquilo tudo e a cabeça está em ponto morto. Olhar
pela janela. Percebo o sol e o ar razoavelmente quente para estar com pouca
roupa. Atingir que há muito que tornear as pernas em direcção aquele sitio onde
posso, após engolir o creme gelado, sabor a quase morango (disfarces) e sentir
que todas as linhas têm parêntesis. Esses são tomados de assalto. Uso-os como
deslizes latentes de ora bem, esforcem-se
um bocadinho, por que eu digo mais do que parece. Escrevo pela viagem. Só vem
quem quer. Ando a ler-me, nas linhas das minhas mãos.
Penso nela. A ausência dela, já marcada, tem destas
obras magníficas. Sem ela percepciono bastante melhor (mas só agora), o que
vamos falando, em interlocuções cronometradas que, após aquilo tudo, trago, com
exímio jeitinho, seguro nas mãos. Talvez falte somente soltar.
Mas há aqueles que gostam das mãos para exibir anéis
como troféus.
Já fiz isto,
aquilo e agora sou assim.
Leio revistas
de economia e por tal motivo sou um máximo.
Sou muito
melhor por que estudei cinema e faço curtas-metragens que ninguém percebe.
(Uma vez, sentei-me numa galeria em Cedofeita a olhar
para uma curta. Sai de lá a perceber que maior parte das pessoas gosta de
contornos. Apenas. Fiquei entediada.)
Olha lá esta
minha história. Era uma bem fixe e eu estou aqui a falar nisso mas já nada
importa. Sou uma pessoa forte.
Reparo (e isso é uma estranha mania, que vem de
criança, coisa inata, que me ocupou horas de brincadeira infindáveis) que a sonolência
está estampada nos rostos. Muitas vezes, sinto que é impossível compreender uma
palavra do que as pessoas dizem. Parece tudo amorfo nos lábios.
Rapidamente, vagueio à fila de espera. Nas minhas
costas, um casal sul-americano, articulando um espanhol qualquer, palreiam
assertivos. Foi inevitável ouvir o que diziam e, tão simples quanto é o redondo
do Mundo, falavam dos outros. A história pouco ou nada interessa, não a vou
contar.
Retiro-me para as dúvidas das pessoas e o sem-saída. Há o sem muita coisa. Ultrapassa o cem-de-centena.
Esse primeiro lugar elencado, surge-me como aterrorizador. No entanto, é uma
possibilidade, sendo que essa é pior do que o nada. O nada é um estado vazio azedo. É vazio, descontrolado, sem
limites. Mas até esse tem saída, seja por força motriz impulsionadora e
criativa. Seja pelo suicídio. Nunca nenhum paciente meu se matou. Embora assim
ocorra até ao minuto presente, as atitudes parassuicidárias brotam em vários. Mais
mulheres do que homens. Os masculinos seres da força falam menos daquilo que
fariam. Parecem cingir-se mais a dados concretos da realidade – a deles,
logicamente. Atrevo-me a avaliar que sentem mais concretamente e, por tal, mais
duro. Decorre daí a fragilidade mais compressora, reverberando o juízo da
realidade.
Passo atrás, os comportamentos parassuicidários, histriónicos
e brutalmente neuróticos, surgem no livre curso de uma fuga à verdadeira dor. É
uma auto-mutilação, cujo cerne e meta são deslocados do alívio imediato da dor
mental. Aí, o núcleo histriónico, delapidador de prepotência (mas revelador de
um profundo narcisismo), aguenta a dor. Introjecta-a, como se a engolisse. Creio
até que se alimenta dessa dor mental. Esse movimento de se auto-infligir de
maleita física surge como veículo à animosidade à sensação de vazio, que remete
à necessidade de preenchimento por esvaziamento – do ego, vazio do próprio, que
se preenche do outro, que se torna solicito, pronto e angustiado. Nessa partilha,
não há vazio, aos olhos do histrionismo disseminado naquele registo psíquico.
A propósito, questionam-me inúmeras vezes sobre a questão
dos limites entre mim, enquanto psicóloga clínica (como se só nós nos tivéssemos
de delimitar) e o outro, o paciente, o que sofre (como se só os pacientes dos psicólogos
sofressem). Pois bem, cada paciente se mostra distinto. Uns, ávidos de escuta,
falam incessantemente. Aqui, muitas vezes, surge o efeito de devo denominar de “escoamento”
– a ideia de falar com um psicólogo foi bastante para que, aquele em
sofrimento, evacuando o material perturbador, se sentisse melhor. Mas, por detrás
desse escoamento vago, considero eu, está a estaca de frequentar consultas com
um psicólogo que, a meu ver, é o assumir que algo não vai bem. E esse, sem margem para grandes dúvidas, é um
movimento demasiadamente doloroso. A todos. Assim, a impressão (não passando
disso) da fragilidade pessoal é tão avassaladora que se mascara o acto clínico,
numa simples conversa com alguém que podia atestar com vinheta, afiançando
sanidade mental. Essa última regista-se, então, como personalidade forte,
pessoa forte e capaz de enfrentar os problemas diários (ou sonega-los ao mais
pequeno grão), que pode eliminar facilmente os efeitos adversos do desespero e
estados submergidos de angústia. Num ápice, conclui-se o de há mais que muito
tempo. Existe e é assim, impossível o escoamento ser um verdadeiro rasgo para
atestar a “personalidade forte”.
O sol está quente. Só me questiono o que aconteceu às
pessoas que tanto precisam de se evadir constantemente daquilo que há para
sentir. O que será que se passa que ser forte é diademar as suas cabeças com eu tenho uma personalidade forte,
reiterando gritos necessários. É que isso (parece-me)
leva a coisas sem-saída, digo eu que
tinha pousado a escrita na mesa pequena.
Talvez a dor de cabeça, que voltou (nada que me
surpreenda), e o gelado feito cone de sabores de morangos disfarçados em cremes
dulcíssimos, sejam o bastante para riscar e riscar linhas que vão continuar a
deixar-me despenteada de tanto ter de segurar o crânio. São, assim, mais do que
é costume, concluindo uma imensidão de bafejamentos líricos, pois é isso que
sou, agarrada ao que me pertence e de mim sai. Não amassei pergaminhos. Com custo,
pus o pé direito em cima deles e agora, talvez, os olhos (estragados) vejam
para além dos anéis que trago nos dedos.
Ana