18 agosto 2012

escoamentos, gente forte e sem-saídas


Arvorar o corpo. Depor as pernas no chão, sentir o enrijecido caminho e faze-lo mecanicamente. Ir direita ao congelador e sacar um gelado de cone, que tem um sabor que já não faz lembrar morangos. Arrancar de qualquer maneira o papel enleante, lamber aquilo tudo e a cabeça está em ponto morto. Olhar pela janela. Percebo o sol e o ar razoavelmente quente para estar com pouca roupa. Atingir que há muito que tornear as pernas em direcção aquele sitio onde posso, após engolir o creme gelado, sabor a quase morango (disfarces) e sentir que todas as linhas têm parêntesis. Esses são tomados de assalto. Uso-os como deslizes latentes de ora bem, esforcem-se um bocadinho, por que eu digo mais do que parece. Escrevo pela viagem. Só vem quem quer. Ando a ler-me, nas linhas das minhas mãos.

Penso nela. A ausência dela, já marcada, tem destas obras magníficas. Sem ela percepciono bastante melhor (mas só agora), o que vamos falando, em interlocuções cronometradas que, após aquilo tudo, trago, com exímio jeitinho, seguro nas mãos. Talvez falte somente soltar.

Mas há aqueles que gostam das mãos para exibir anéis como troféus.        
Já fiz isto, aquilo e agora sou assim.
Leio revistas de economia e por tal motivo sou um máximo.
Sou muito melhor por que estudei cinema e faço curtas-metragens que ninguém percebe.
(Uma vez, sentei-me numa galeria em Cedofeita a olhar para uma curta. Sai de lá a perceber que maior parte das pessoas gosta de contornos. Apenas. Fiquei entediada.)
Olha lá esta minha história. Era uma bem fixe e eu estou aqui a falar nisso mas já nada importa. Sou uma pessoa forte.

Reparo (e isso é uma estranha mania, que vem de criança, coisa inata, que me ocupou horas de brincadeira infindáveis) que a sonolência está estampada nos rostos. Muitas vezes, sinto que é impossível compreender uma palavra do que as pessoas dizem. Parece tudo amorfo nos lábios.

Rapidamente, vagueio à fila de espera. Nas minhas costas, um casal sul-americano, articulando um espanhol qualquer, palreiam assertivos. Foi inevitável ouvir o que diziam e, tão simples quanto é o redondo do Mundo, falavam dos outros. A história pouco ou nada interessa, não a vou contar.

Retiro-me para as dúvidas das pessoas e o sem-saída. Há o sem muita coisa. Ultrapassa o cem-de-centena. Esse primeiro lugar elencado, surge-me como aterrorizador. No entanto, é uma possibilidade, sendo que essa é pior do que o nada. O nada é um estado vazio azedo. É vazio, descontrolado, sem limites. Mas até esse tem saída, seja por força motriz impulsionadora e criativa. Seja pelo suicídio. Nunca nenhum paciente meu se matou. Embora assim ocorra até ao minuto presente, as atitudes parassuicidárias brotam em vários. Mais mulheres do que homens. Os masculinos seres da força falam menos daquilo que fariam. Parecem cingir-se mais a dados concretos da realidade – a deles, logicamente. Atrevo-me a avaliar que sentem mais concretamente e, por tal, mais duro. Decorre daí a fragilidade mais compressora, reverberando o juízo da realidade.

Passo atrás, os comportamentos parassuicidários, histriónicos e brutalmente neuróticos, surgem no livre curso de uma fuga à verdadeira dor. É uma auto-mutilação, cujo cerne e meta são deslocados do alívio imediato da dor mental. Aí, o núcleo histriónico, delapidador de prepotência (mas revelador de um profundo narcisismo), aguenta a dor. Introjecta-a, como se a engolisse. Creio até que se alimenta dessa dor mental. Esse movimento de se auto-infligir de maleita física surge como veículo à animosidade à sensação de vazio, que remete à necessidade de preenchimento por esvaziamento – do ego, vazio do próprio, que se preenche do outro, que se torna solicito, pronto e angustiado. Nessa partilha, não há vazio, aos olhos do histrionismo disseminado naquele registo psíquico.

A propósito, questionam-me inúmeras vezes sobre a questão dos limites entre mim, enquanto psicóloga clínica (como se só nós nos tivéssemos de delimitar) e o outro, o paciente, o que sofre (como se só os pacientes dos psicólogos sofressem). Pois bem, cada paciente se mostra distinto. Uns, ávidos de escuta, falam incessantemente. Aqui, muitas vezes, surge o efeito de devo denominar de “escoamento” – a ideia de falar com um psicólogo foi bastante para que, aquele em sofrimento, evacuando o material perturbador, se sentisse melhor. Mas, por detrás desse escoamento vago, considero eu, está a estaca de frequentar consultas com um psicólogo que, a meu ver, é o assumir que algo não vai bem. E esse, sem margem para grandes dúvidas, é um movimento demasiadamente doloroso. A todos. Assim, a impressão (não passando disso) da fragilidade pessoal é tão avassaladora que se mascara o acto clínico, numa simples conversa com alguém que podia atestar com vinheta, afiançando sanidade mental. Essa última regista-se, então, como personalidade forte, pessoa forte e capaz de enfrentar os problemas diários (ou sonega-los ao mais pequeno grão), que pode eliminar facilmente os efeitos adversos do desespero e estados submergidos de angústia. Num ápice, conclui-se o de há mais que muito tempo. Existe e é assim, impossível o escoamento ser um verdadeiro rasgo para atestar a “personalidade forte”.

O sol está quente. Só me questiono o que aconteceu às pessoas que tanto precisam de se evadir constantemente daquilo que há para sentir. O que será que se passa que ser forte é diademar as suas cabeças com eu tenho uma personalidade forte, reiterando gritos necessários. É que isso (parece-me) leva a coisas sem-saída, digo eu que tinha pousado a escrita na mesa pequena.

Talvez a dor de cabeça, que voltou (nada que me surpreenda), e o gelado feito cone de sabores de morangos disfarçados em cremes dulcíssimos, sejam o bastante para riscar e riscar linhas que vão continuar a deixar-me despenteada de tanto ter de segurar o crânio. São, assim, mais do que é costume, concluindo uma imensidão de bafejamentos líricos, pois é isso que sou, agarrada ao que me pertence e de mim sai. Não amassei pergaminhos. Com custo, pus o pé direito em cima deles e agora, talvez, os olhos (estragados) vejam para além dos anéis que trago nos dedos.

Ana

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