04 novembro 2017

dois portuenses a tomar café em Lisboa

Ver Lisboa de cima fê-la parecer inacreditavelmente pequena. Daquele ângulo, não propositado mas sim apenas acidental, tal qual eles, Lisboa estava organizada colorida a rosa e amarelo, ponteada a branco sujo. Estava bonita. Eles eram os dois portuenses, que mais tarde caminhariam pelas ruas de Lisboa. Não estariam a passear, pouco falariam. O mais importante era proteger que a saia dela levantasse com a ventania. As palavras não importariam nada. Mais nada. As perguntas dariam lugar a passada larga, apressada para lado nenhum, pois não haveria lado nenhum, não com aquela atitude que seria como quem quisesse fazer de conta que tudo seria tão inocente. Qual inocência seria essa se a saia dela estaria prestes a esvoaçar? Qual inocência seria essa se ninguém ali saberia em rua se poderia sentar apenas e falar falar falar. O que seria óptimo era os pensamentos falarem também. Porque gritaria gritos estúpidos, parvalhões, cheios de bs em vez de vs, com aqueles gestos que riscariam o ar. Lisboa não estava preparada para isso, com certeza. Por isso mesmo, aqueles dois portuenses ali perdidos em passos sem rumo, rápidos e magoados, histéricos e indignados, que nem teriam tanto assim a carregar, não poderiam coexistir ali naquelas ruas pontilhadas as cores, todas alegres e confortáveis. E foi por isso que ela nem pousou ali, nem ele a esperou para a levar a passear. 
Passaram, e isso é facto, a ser feitos de cera à espera de uma qualquer noite de fim de Verão para, assim, apenas derretem até à memória. 

14 outubro 2017

olha lá a minha estante aqui

Isto de passar muito tempo em hotéis, táxis e aeroportos pode tornar-se solitário. Porém, nada tem de vazio. Há sempre pessoas a passar, com mais ou menos pressa, largando um ou outro sorriso rápido, quase cúmplice, como quem diz "olá, é isto que tem de ser". Às vezes, lá se pára por um momento, tornando uma conversa rápida, em que se deixam cair coisas perfeitamente aleatórias, com mais ou menos sentido, com mais ou menos densidade. A verdade é que há sempre alguma forma de encontro. E, por mais breves que sejam, não se pode ficar indiferente. 

Perco algum tempo, não no sentido de perda oca, mas porque me deixo levar, em devaneios coloridos sobre este e aquele, sobre os que vão passando. 




Em Barajas, recordo-me agora, ter estado a conversar com uma mulher nos seus sessenta, Peruana, que dedicou a vida a ajudar alguma das muitas comunidades religiosas a alimentar a população de Lima, no Peru. Dizia-me o quão difícil foi organizar tudo para arranjar arroz e milho para as pessoas. Contava-me que endureceu os dedos a amassar pão para as pessoas. Explicava-me o quão difícil foi arranjar um espaço e lápis para ensinar mulheres a ler e a escrever. Falava-me orgulhosamente do padre, do qual não me lembro do nome, homem trabalhador e preocupado, afirmava. Era pequena e morena. A sua voz era doce e sucinta, cheia de esperança. Quando entramos no avião, não a tornei a ver. Até hoje. Já passaram 5 meses. Verdade é que se a tornasse a ver, provavelmente não a reconheceria. Só a sua história me assalta a memória, de quando em vez, afincando-se feliz, prazerosa. Na minha cabeça, imagino-a no bairro de Callao, em Lima, que posteriormente vi de passagem, atarefada, inquieta e cheia de vontade, partilhando-se por uma causa nobre, deslizando pelo meio de caminhos castanhos e verdes, a contornar tijolos empilhados em todo o lado.  Com ou sem deus por trás. Posso dizer até que, para mim, ela passou aquilo tudo sem dizer que lhe doía a cabeça, sem se queixar dos joelhos ou das costas, sempre com roupas do mesmo feitio, o mesmo corte de cabelo, sem perfumes. Ali só erguia aquela vontade inabalável. Por ali, azafamada, sem tempo de lhe doer a alma. 

Passou. 

No final do dia, todos somos pessoas com as nossas estantes pessoais. Transporta-mo-las com noção clara de que, quando se apagam as luzes dentro de um avião (especialmente no voo de longo curso), o maravilhoso milagre de estarmos vivos está jogado ao ar, nas mãos de um qualquer bravo piloto. Sabemos que quando se acenderem, vamos estar perto do destino, o mesmo onde escrevermos mais algum pedaço para a nossa estante. E que no meio de tantas horas vazias, de olhares de estranhos, ar condicionado, microfones estridentes, barulho de avião, malas e maletas, poderemos orgulhosamente tirar uma história daquelas magníficas. Partilhamo-las mais connosco próprios. Detenho-me com este sentimento de que, na verdade, todos temos é saudades de casa. 

13 agosto 2017

Coisas a cair

É mais fácil quando todos se calam e cai sobre mim este breu. Ajuda a ficar naquilo que se está a passar. 

Tirei os sapatos, os mesmíssimos que já não usava há anos. Magoaram-me o dia todo. A saudade é um pano somático escuro num dia com o sol a gritar. A saudade faz de tudo, como exagerar, como chorar prantos agoniados, como sorrir e correr dentro de casa. A saudade faz, também, um nada. Faz um silêncio, pausado e que de oco nada tem, nada é. 

Não atirei com nada para o chão porque não faço isso, a menos que me caiam coisas das mãos. Que me caiam as coisas das mãos. Das minhas mãos. Assim, recordo-me a pousar as coisas, nos devidos lugares, com certeza inabalável de que nada vai estar fora do sítio. Ali e acolá, lugares cativos de coisas que não são nada. 

Teria um certo glamour, daqueles vaporizados, de cortar a respiração, contar que me sentei no tapete de juta em frente a lareira, já agarrada a  um copo de vinho tinto, com as minhas unhas pintadas de tons pastel e com a blusa branca. Não foi nada disso. 

O que aconteceu foi sentar-me no sofá do costume, com as mãos a sustentar a cabeça, mãos essas que trazem já verniz vermelho estalado, um calo na mão esquerda e dores do pulso direito. Às vezes, acho que tenho um ferro quente, fininho como uma linha, a entrar-me no pulso. Lá se vai o glamour todo, até porque os meus cotovelos magros e escanzelados entram-me pelas coxas dentro e dói também. 

Dizia que me sentei no sofá. Fiz aquilo tudo que disse e, depois de um suspiro, para deixar sair o ar todo, aquela máscara toda, aquele teatro todo, recostei-me e dormi. Sonhei, como sonho a cada naco de sono, com coisas boas, coisas estranhas e coisas a caírem-me das mãos. A caírem-me constantemente das mãos. A escorregarem das minhas mãos magras, pequenas, com um calo numa delas, com verniz vermelho estalado, com dores de pulso, com dores estridentes que só me trazem à ideia um ferro fininho, quente, o grande estupor! 

Acordo para isso todos os dias, em golfadas de nervoso miudinho, em sobressalto de ter sonhado que tudo me cai ao chão. Ah, se cai. Terei mais calos ainda de as apanhar. Não há outro remédio e ate já sabem o que se diz em relação a isso. Até amanhã. 




03 julho 2017

Transparente

Hoje disse-te que o tempo não existe. Sei isso de cor e salteado. Porém, existes tu e todas as coisas que viste, que sentiste nos pés. Os mesmos que torceste tantas vezes. Deste tanto, mostraste tudo, foste incansável. Imparável. Tanto. Num rodopio, em linha recta, de tantas formas, que já nem te sabias. Tornaste-te transparente. Só tinhas roupas em cima de ti. E tarefas. Uma, duas, três... até ao infinito. Foste tanto que já nem eras tu mais. Eras tudo. 

E eu, que te vi chorar, abracei-te. Senti que tinhas 30 cavalos no peito, largados numa planície sem fim. Era tão estrondoso, que parecia que ias rebentar, que os cavalos iam irromper por ti fora. Rasgar-te o peito, dilacerar-te em pedaços, desse tudo que nem eras tu sequer. E nunca mais isso acontecia. Agarrei-te e disse-te que o tempo não existe. Então, acho que ficou ali um laçarote, agarrando-nos às duas, em que o tudo não é senão tu mesma, vestida de azul celeste, a domar cavalos e a coleccionar coragem. 

Coragem. Sim, eu sei que o tempo não existe! E por mais que ele te assobie, estridente, ordenando à correria que te obriga a aninhares-te aí no teu canto, não será certo que ele passe a existir. Ganha-se fôlego caminhando. Hoje podes vir as minhas cavalitas. 



09 abril 2017

As canas que seguram a gente

Afasto-me. 

Fico ali ao longe a olhar para o chão. Não olho para trás, por estar a fitar o chão, que me agarra, não me larga. 

Está calor. 

Posso sentir o sol na parte traseira das minhas pernas. As pernas escaldam e o chão não quer refletir nada. Vejo pedrinhas, pedregulhos, folhas mortas das árvores, pontas de velhos cigarros fumados, lixo. Os braços pendem ao lado do corpo, tal como umas canas de segurar o equilíbrio. As costas erectas parecem não doer e sustêm-se em todos os restantes músculos. O meu crânio pende para o chão. Não podia ver mais nada. Só aquele entulho de coisas que ninguém quer. Os olhos estão secos, a picar. O meu nariz dói-me por dentro. Nas narinas, há um fogo a queimar. A língua empurra-se contra os dentes, os meus, sem quer. Os meus dentes tocam-se. Os de cima com os debaixo e, também esses, se sentem esmagados, fixos, duros e inquebráveis. O meu cabelo resta ali também, apontado para o chão, calcando a parte de trás das minhas orelhas. 

Que porcaria. 

O chão estava imundo. Porco! Ninguém quis aquele lixo todo que está ali a sujar tudo. Ninguém o quis e já ninguém o quer. Mesmo quem se dá conta, não presta atenção àquela podridão gritante que está apenas e só ali no chão. O mesmo receptáculo dos meus olhos, para onde o meu corpo desagua em laivos pesados. Que nem rochedo do início do mundo. 

Penso? 

Ali não há a mente. Ali jaz o meu corpo, arvorado, recto, que não sente nada a não ser aquele peso indolente, granuloso, incandescente. 


  Image: @nidiavillaverde